Reportando-se aos processos de alfabetização, escolarização e níveis de literacia demonstrados, é assim que se refere o autor António Candeias - do capítulo V da obra Literacia e Sociedade, dirigida por Maria Raquel Delgado-Martins - à evolução conceptual e funcional dos termos e dos seus processos.
Na viragem do século XIX para o XX, o alfabeto poderia ser quem afirmasse ou provasse saber ler ou escrever, saber ler e escrever, saber ler, escrever e contar, ou ter frequentado uma escola ou dela obtido um diploma. Estes factos e para melhor compreensão dos seus efeitos estatísticos são ilustrados com exemplos distintos, do qual destaco, pela ambiguidade dos resultados, os Censos Populacionais Finlandeses em 1880. Nestes censos, o saber ler era a qualidade que definia o alfabeto e que medida estatisticamente apresentou uma população 98% alfabetizada. Já no século XX e com base nestes mesmos estudos, a UNESCO reviu estes resultados, tendo como indicador de medida o indivíduo que sabe ler e escrever (alfabeto), baixando a percentagem de alfabetizados para 13%.
A imprecisão dos termos, como é referido no estudo em análise, está intrinsecamente ligado ao que se quer medir e representar estaticamente. Assim, na amplitude entre noção e intenção há um intervalo confortável que serve propósitos estatísticos e interesses ocultos de uma falsa vaidade, cuja motivação para a manipulação dos termos e dos resultados tem tanto de secular como de contemporaneidade.
O que os resultados estatísticos, até à segunda metade do século XX, nunca demonstraram foi a capacidade dos indivíduos de funcionar em contacto com a cultura escrita, denotando-se, à medida que a sociedade submergiu nessa cultura e se complexificou, uma reacção limitada e disfuncional por parte de importantes fracções de população escolarizada. Desta constatação e preocupação emergiu o termo de alfabetização funcional «para referir competências do uso da escrita em ambientes formais e informais, sendo a partir desta noção que, em Portugal, se constrói o conceito de literacia».
Literacia, cujo conceito se mostra igualmente de complexa delimitação, tem como definições base a “capacidade de, através da escrita e ao que a ela está associado, se conseguir funcionar em sociedade e atingir objectivos funcionais” e/ou “capacidade de processamento da informação escrita no contexto do dia-a-dia”. Este conceito surge com a constatação das evidentes dificuldades dos indivíduos escolarizados em contacto com a cultura escrita, denunciando o que as sucessivas reformas educativas não conseguiram resolver: entrelaçar a vivência escolar com as exigências quotidianas.
Esta é uma sentença algo irónica se atendermos ao facto de que a escolarização em massa teria como objectivo primário dotar, uniformemente, todos os indivíduos de determinadas competências - independentemente do seu contexto social, cultural, linguístico, étnico - em prol de um bem comum, ainda que hierarquizado, que se traduziria na construção da sociedade moderna.
Actualmente, literacia respeita múltiplas competências associadas à ideia de um sujeito detentor de qualidades e conhecimentos mais abrangentes do mundo natural, da complexidade social e dos seus artefactos, com uma visão conciliadora do global e do particular; não deixando de ser um conceito, em mutação, que transfere para os indivíduos e para as instituições a responsabilidade da concretização de um ideal social projectado e imposto por uma minoria cujo poder cria o design das sociedades humanas através dos tempos.
Obra em estudo: Literacia e Sociedade, Contribuições pluridisciplinares. Organização: Maria Raquel Delgado-Martins, Glória Ramalho, Armando Costa. Editorial Caminho, SA, Lisboa, 2000
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