Face às exigências sociais a que os adultos têm de atender, cada vez mais cedo a actividade infantil se inscreve fora do contexto familiar e a preocupação com o seu bem-estar e desenvolvimento é, na sua maioria, uma preocupação partilhada entre os pais e as instituições.
A esta co-responsabilidade, resultante da escolarização da infância, deve estar associado um movimento reflexivo constante, envolvendo todos os participantes, que perspective uma prática pedagógica que transcenda as expectativas parentais e escolares e materialize os normativos universais que visam o profícuo e integral desenvolvimento das crianças.
Nesse âmbito e sob a égide dos direitos da criança ao jogo e aos tempos livres (artº 3º); à saúde e bem-estar (artº 24), procuramos neste trabalho identificar e reflectir sobre o quotidiano infantil e as relações que se estabelecem em torno deste.
Bruno, uma criança como todas as outras
O quotidiano infantil é marcado essencialmente por duas condicionantes: o tempo laboral (em referência à ausência dos pais em fase precoce) e o tempo de escola. A partir destes factores, os pais estabelecem uma relação com as instituições prestadoras de cuidados/serviços vocacionados para a infância, procurando, por um lado, assegurar os cuidados primários enquanto trabalham e por outro, uma oferta educativa que corresponda às suas expectativas parentais.
Na gestão da vida familiar, os adultos têm como preocupação primária garantir a segurança dos seus filhos e consequentemente o seu bem-estar. Esta gestão torna-se mais difícil quando a criança não é saudável e a situação económica da família é frágil.
A escolaridade obrigatória, de regime alargado a actividades extra-curriculares e com componente de apoio à família veio, por assim dizer, resolver o problema parental do Onde e do Por Quanto Tempo. Contudo, tendo por base o desenvolvimento integral da criança importa reflectir sobre o Como, ou seja, de que forma ocupam as crianças esse tempo extra de permanência no espaço escolar.
As nossas expectativas sociais levam-nos a pensar que comummente o dia de uma criança começa com os preparativos e cuidados que a conduzirão para a escola na sua melhor forma física e mental. Durante a semana de aulas/trabalho, não resta à família outro tempo que não seja o de alimentar, tratar e vestir, tanto no primeiro contacto matinal como no regresso a casa ao final do dia.
O dia-a-dia do Bruno é regido por pequenas campainhas que alertam para a hora do acordar, a hora de sair de casa, a hora de entrar na sala de aula, a hora do recreio, a hora das refeições, a hora de brincar, a hora de participar nas actividades. No seu primeiro contacto com o 1º Ciclo trouxe para casa esta novidade, pois sente fortemente a influência do toque da campainha na sucessão rotineira das diferentes tarefas e actividades.
O tempo destinado à livre recreação, momentos de maior liberdade, denominado de intervalo corresponde a blocos de 15 minutos de brincadeira desenfreada. Apenas os intervalos para o almoço e entre o fim da aula às 15h15 e o inicio das AEC às 15h45 têm uma duração superior, até porque engloba a hora do lanche.
Terminado o tempo lectivo, as horas seguintes são ocupadas pelas actividades programadas que se distribuem semanalmente, das 15h45 até às 17h30, da seguinte forma: Expressões Artísticas à 2ª feira, Apoio ao Estudo à 3ª feira, Educação Física e Inglês à 4ª e à 5ª e Expressões Artísticas e Actividades Lúdicas à 6.ª. Diariamente, recolhem à sala do prolongamento para ver um filme animado ou jogar um jogo enquanto esperam pelos pais.
Algumas crianças dedicam-se, após as 17h30, a actividades desportivas e à dança, mas o Bruno, que queria ir para a escola de futebol, não pode porque presentemente a sua condição motora não o permite.
Até aos 3 anos de idade poderíamos considerar o Bruno uma criança saudável, pois todo o seu crescimento e desenvolvimento psicomotor correspondia ao esperado para uma criança da sua idade. Contudo, antes de completar os 4 anos foi-lhe diagnosticada uma doença que comprometeu o normal desenvolvimento motor, implicando algumas limitações locomotoras, especialmente em momentos de crise, em que por força da dor ou da terapêutica, deixa de andar temporariamente.
Actualmente, o Bruno vivencia mais um período de crise e o seu quotidiano foi amplamente afectado. Dependente de um aparelho ortopédico que o limita deixou de ter acesso às actividades extra-curriculares por falta de condições de permanência na escola após o horário lectivo. Contudo, é a hora do recreio o motivo de maior infelicidade do Bruno.
Tal como já tinha acontecido no Jardim-de-infância, o recreio passou novamente a constituir um momento de angústia, não porque tem de ter cuidado com o movimento de todos à sua volta, com os obstáculos e as diferenças de pavimentos, mas porque tem de lidar com a falta de mecanismos de resposta da instituição e dos próprios pais para lhe providenciar condições para interagir com outros e com o meio.
O espaço recreio, em termos de equipamento, é pouco mais do que um amplo espaço convidativo ao movimento e as crianças organizam-se e distribuem-se autonomamente em grupos de afectos e em brincadeiras que vão das corridas, ao jogo da bola (dominado pelos rapazes mais velhos), às cantigas e às danças, à partilha de brinquedos que trazem de casa. Entre os períodos de crise, o Bruno é um dos seus elementos activos e esforçando-se para ser aceite por todos, participa das brincadeiras, esquecendo, por momentos, todo o desconforto que sente.
Contudo, estando o Bruno clinicamente num momento de crise, este vê-se confinado a um local específico, considerado seguro e estratégico, afastado da tropelia dos outros. Nas últimas semanas, tem alternado entre o sentado na sala de aula e o sentado no recreio, ao deitado na cama. Nas últimas semanas e tal como já tinha acontecido no Jardim de Infância, vê-se obrigado ao papel de espectador não participante, isolado e isolando-se.
Reagindo ao apelo da criança que no seu entender passa os dias sem brincar, os pais sentem-se compelidos a adquirir, constantemente, novos brinquedos e a permitir maiores períodos de exposição à televisão e aos videojogos, mesmo em dias de escola.
Visualizando o impacto da redução do tempo de brincadeira e de autonomia em uma criança com algumas dificuldades temporárias, não posso deixar de recordar todas as outras que deambularam pelo sistema escolar, constrangidos nas suas liberdades, nos seus direitos e necessidades, quer por força das suas limitações físicas permanentes, quer por força das barreiras linguísticas e ou culturais.
Por tal penso ser pertinente a seguinte questão: não deverá a dimensão pedagógica ser extensiva ao espaço de lazer e aos tempos livres?
Formosinho, em referência a Pessanha (1999), salienta o papel da componente lúdica no desenvolvimento da criança, considerando-a uma actividade “natural e espontânea”, útil ao desenvolvimento integral da criança, “favorecendo a sua integração afectiva, social e cultural”(p.118). Este aspecto assume especial relevo se considerarmos que as crianças como o Bruno podem através do jogo esbater as diferenças – de idade, de género, de condição física – dado que são colocados em pé de igualdade com os outros jogadores perante um determinado número de regras e objectivos.
Outros teóricos, como Piaget (1962) e Vygotsky (1978) são referidos pela autora, como defensores da teoria de que o acto de brincar é “estimulador da aprendizagem social” (p.122), considerando que é através da actividade lúdica que as crianças se apropriam dos espaços, dos materiais, exprimem ideias, formulam questões, criam objectos, fazem correspondências, aprendem regras e adequam o seu comportamento ao novo ambiente.
Segundo Bruner (1998), as brincadeiras auxiliadas por um adulto podem conduzir a criança ao processo de aprender a aprender (Delors, 1999). Este aspecto é tanto ou mais benéfico se considerarmos a exposição mediática a que as crianças estão sujeitas e às competências que têm de desenvolver para descodificar esses conteúdos.
Ocupando um lugar central nos tempos livres de um largo número de crianças, estes artefactos sociais têm um papel de entretenimento socializador que não pode ser ignorado pela escola, tornando-se importante decompor as suas mensagens, procurando munir as crianças de mecanismos cognitivos para o correcto entendimento e uso dos media. Esta aprendizagem e o adquirir e desenvolver destas competências transformam a criança num cidadão em potência, capaz de compreender o que a rodeia, os seus deveres e obrigações, a sua relação com os outros, constituindo uma preparação para os papeis a desempenhar no mundo social (Pereira, 2004).
Tal como no estudo de caso realizado por Formosinho, na escola do Bruno não existe um plano de recurso para crianças cuja energia não pode ser gasta nos mesmos termos da maioria e cuja fragilidade os mantém à parte. Tão pouco existe uma cultura pedagógica que materialize na pessoa do aluno, a pessoa-criança, já que a participação deste no seu processo educativo se têm traduzido mais em objecto da acção, do que sujeito da mesma (Boutinet, 1996).
Respondendo à questão colocada, é de inferir que só através da acção educativa poderemos dotar as crianças com ferramentas que permitem distinguir o essencial do supérfluo e valorizar uma vivência cultural activa, resistente aos impulsos consumistas.
Uma acção pedagógica diferenciada que eduque a criança para a ocupação dos tempos livres, de forma activa e crítica, proporcionará uma vivência mais saudável, dotando-a de outras competências como o saber ser e o saber estar com os outros (Delors, 1999).
Esclarecimentos
O termo Escola aqui utilizado não se refere especificamente ao espaço físico escolar em que o “Bruno” habita, mas sim às responsabilidades institucionais e pedagógicas de quem de direito deveria dotar os estabelecimentos de ensino de recursos materiais e humanos para que a instituição escolar seja de facto inclusa, promotora de desenvolvimento pessoal, catalisadora dos saberes e do Ser.
Homenagem
Quero aqui prestar homenagem a todos os profissionais do estabelecimento de ensino frequentado pelo “Bruno”,com especial destaque à sua professora, pelo seu esforço e empatia, sendo testemunha da sua preocupação em fazer mais com tão pouco.
Aproveito também para prestar homenagem ao Exmo Senhor Vereador do Pelouro Educação da Câmara Municipal, que tomando conhecimento do caso do Bruno, providenciou para que o menino voltasse a ter direito ao recreio e às actvidades, sentindo-se esta criança novamente Pessoa.
Referências bibliográficas
Formosinho, J. A CRIANÇA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA, 2004, Universidade Aberta
Pereira, S. OS DESAFIOS EDUCATIVOS DOS MEDIA NA EDUCAÇÃO DE INFÂNCIA, 2001, Instituto da Criança, Universidade do Minho, última consulta a 14 de Dezembro de 2009, em:
https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/5095/1/DesafiosEducativosMediaJI.pdf
Amante, L. (2007). AS TIC NA ESCOLA E NO JARDIM DE INFÂNCIA NA ESCOLA E NO JARDIM DE INFÂNCIA: MOTIVOS E FACTORES PARA SUA INTEGRAÇÃO; Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 03, pp. 51-64., última consulta a 13 de Dezembro de 2009, em: http://sisifo.fpce.ul.pt/pdfs/sisifo03PT04.pdf
Ecossistema mediático
Há 1 ano
"BRUNO": meu filho, teu filho, nosso filho...
ResponderEliminarQue cada um o sinta como SEU próprio filho.
Muita força, mães coragem!
Beijinho, D. Ema, por tudo.
Ana Pereira
http://6aebsa.blogspot.com
Concordo plenamente que se cada um de nós olhasse para cada criança como sua, haveria menos dor neste mundo e mais riso inocente, genuíno e contagiante.
ResponderEliminarGrata pelo comentário e participação activa.
Com grande admiração e estima,
Ema