domingo, 7 de fevereiro de 2010

A criança na sociedade contemporânea: uma perspectiva

Face às exigências sociais a que os adultos têm de atender, cada vez mais cedo a actividade infantil se inscreve fora do contexto familiar e a preocupação com o seu bem-estar e desenvolvimento é, na sua maioria, uma preocupação partilhada entre os pais e as instituições.
A esta co-responsabilidade, resultante da escolarização da infância, deve estar associado um movimento reflexivo constante, envolvendo todos os participantes, que perspective uma prática pedagógica que transcenda as expectativas parentais e escolares e materialize os normativos universais que visam o profícuo e integral desenvolvimento das crianças.
Nesse âmbito e sob a égide dos direitos da criança ao jogo e aos tempos livres (artº 3º); à saúde e bem-estar (artº 24), procuramos neste trabalho identificar e reflectir sobre o quotidiano infantil e as relações que se estabelecem em torno deste.

Bruno, uma criança como todas as outras


O quotidiano infantil é marcado essencialmente por duas condicionantes: o tempo laboral (em referência à ausência dos pais em fase precoce) e o tempo de escola. A partir destes factores, os pais estabelecem uma relação com as instituições prestadoras de cuidados/serviços vocacionados para a infância, procurando, por um lado, assegurar os cuidados primários enquanto trabalham e por outro, uma oferta educativa que corresponda às suas expectativas parentais.
Na gestão da vida familiar, os adultos têm como preocupação primária garantir a segurança dos seus filhos e consequentemente o seu bem-estar. Esta gestão torna-se mais difícil quando a criança não é saudável e a situação económica da família é frágil.
A escolaridade obrigatória, de regime alargado a actividades extra-curriculares e com componente de apoio à família veio, por assim dizer, resolver o problema parental do Onde e do Por Quanto Tempo. Contudo, tendo por base o desenvolvimento integral da criança importa reflectir sobre o Como, ou seja, de que forma ocupam as crianças esse tempo extra de permanência no espaço escolar.

As nossas expectativas sociais levam-nos a pensar que comummente o dia de uma criança começa com os preparativos e cuidados que a conduzirão para a escola na sua melhor forma física e mental. Durante a semana de aulas/trabalho, não resta à família outro tempo que não seja o de alimentar, tratar e vestir, tanto no primeiro contacto matinal como no regresso a casa ao final do dia.

O dia-a-dia do Bruno é regido por pequenas campainhas que alertam para a hora do acordar, a hora de sair de casa, a hora de entrar na sala de aula, a hora do recreio, a hora das refeições, a hora de brincar, a hora de participar nas actividades. No seu primeiro contacto com o 1º Ciclo trouxe para casa esta novidade, pois sente fortemente a influência do toque da campainha na sucessão rotineira das diferentes tarefas e actividades.
O tempo destinado à livre recreação, momentos de maior liberdade, denominado de intervalo corresponde a blocos de 15 minutos de brincadeira desenfreada. Apenas os intervalos para o almoço e entre o fim da aula às 15h15 e o inicio das AEC às 15h45 têm uma duração superior, até porque engloba a hora do lanche.
Terminado o tempo lectivo, as horas seguintes são ocupadas pelas actividades programadas que se distribuem semanalmente, das 15h45 até às 17h30, da seguinte forma: Expressões Artísticas à 2ª feira, Apoio ao Estudo à 3ª feira, Educação Física e Inglês à 4ª e à 5ª e Expressões Artísticas e Actividades Lúdicas à 6.ª. Diariamente, recolhem à sala do prolongamento para ver um filme animado ou jogar um jogo enquanto esperam pelos pais.
Algumas crianças dedicam-se, após as 17h30, a actividades desportivas e à dança, mas o Bruno, que queria ir para a escola de futebol, não pode porque presentemente a sua condição motora não o permite.

Até aos 3 anos de idade poderíamos considerar o Bruno uma criança saudável, pois todo o seu crescimento e desenvolvimento psicomotor correspondia ao esperado para uma criança da sua idade. Contudo, antes de completar os 4 anos foi-lhe diagnosticada uma doença que comprometeu o normal desenvolvimento motor, implicando algumas limitações locomotoras, especialmente em momentos de crise, em que por força da dor ou da terapêutica, deixa de andar temporariamente.

Actualmente, o Bruno vivencia mais um período de crise e o seu quotidiano foi amplamente afectado. Dependente de um aparelho ortopédico que o limita deixou de ter acesso às actividades extra-curriculares por falta de condições de permanência na escola após o horário lectivo. Contudo, é a hora do recreio o motivo de maior infelicidade do Bruno.

Tal como já tinha acontecido no Jardim-de-infância, o recreio passou novamente a constituir um momento de angústia, não porque tem de ter cuidado com o movimento de todos à sua volta, com os obstáculos e as diferenças de pavimentos, mas porque tem de lidar com a falta de mecanismos de resposta da instituição e dos próprios pais para lhe providenciar condições para interagir com outros e com o meio.

O espaço recreio, em termos de equipamento, é pouco mais do que um amplo espaço convidativo ao movimento e as crianças organizam-se e distribuem-se autonomamente em grupos de afectos e em brincadeiras que vão das corridas, ao jogo da bola (dominado pelos rapazes mais velhos), às cantigas e às danças, à partilha de brinquedos que trazem de casa. Entre os períodos de crise, o Bruno é um dos seus elementos activos e esforçando-se para ser aceite por todos, participa das brincadeiras, esquecendo, por momentos, todo o desconforto que sente.

Contudo, estando o Bruno clinicamente num momento de crise, este vê-se confinado a um local específico, considerado seguro e estratégico, afastado da tropelia dos outros. Nas últimas semanas, tem alternado entre o sentado na sala de aula e o sentado no recreio, ao deitado na cama. Nas últimas semanas e tal como já tinha acontecido no Jardim de Infância, vê-se obrigado ao papel de espectador não participante, isolado e isolando-se.

Reagindo ao apelo da criança que no seu entender passa os dias sem brincar, os pais sentem-se compelidos a adquirir, constantemente, novos brinquedos e a permitir maiores períodos de exposição à televisão e aos videojogos, mesmo em dias de escola.

Visualizando o impacto da redução do tempo de brincadeira e de autonomia em uma criança com algumas dificuldades temporárias, não posso deixar de recordar todas as outras que deambularam pelo sistema escolar, constrangidos nas suas liberdades, nos seus direitos e necessidades, quer por força das suas limitações físicas permanentes, quer por força das barreiras linguísticas e ou culturais.

Por tal penso ser pertinente a seguinte questão: não deverá a dimensão pedagógica ser extensiva ao espaço de lazer e aos tempos livres?

Formosinho, em referência a Pessanha (1999), salienta o papel da componente lúdica no desenvolvimento da criança, considerando-a uma actividade “natural e espontânea”, útil ao desenvolvimento integral da criança, “favorecendo a sua integração afectiva, social e cultural”(p.118). Este aspecto assume especial relevo se considerarmos que as crianças como o Bruno podem através do jogo esbater as diferenças – de idade, de género, de condição física – dado que são colocados em pé de igualdade com os outros jogadores perante um determinado número de regras e objectivos.
Outros teóricos, como Piaget (1962) e Vygotsky (1978) são referidos pela autora, como defensores da teoria de que o acto de brincar é “estimulador da aprendizagem social” (p.122), considerando que é através da actividade lúdica que as crianças se apropriam dos espaços, dos materiais, exprimem ideias, formulam questões, criam objectos, fazem correspondências, aprendem regras e adequam o seu comportamento ao novo ambiente.
Segundo Bruner (1998), as brincadeiras auxiliadas por um adulto podem conduzir a criança ao processo de aprender a aprender (Delors, 1999). Este aspecto é tanto ou mais benéfico se considerarmos a exposição mediática a que as crianças estão sujeitas e às competências que têm de desenvolver para descodificar esses conteúdos.
Ocupando um lugar central nos tempos livres de um largo número de crianças, estes artefactos sociais têm um papel de entretenimento socializador que não pode ser ignorado pela escola, tornando-se importante decompor as suas mensagens, procurando munir as crianças de mecanismos cognitivos para o correcto entendimento e uso dos media. Esta aprendizagem e o adquirir e desenvolver destas competências transformam a criança num cidadão em potência, capaz de compreender o que a rodeia, os seus deveres e obrigações, a sua relação com os outros, constituindo uma preparação para os papeis a desempenhar no mundo social (Pereira, 2004).

Tal como no estudo de caso realizado por Formosinho, na escola do Bruno não existe um plano de recurso para crianças cuja energia não pode ser gasta nos mesmos termos da maioria e cuja fragilidade os mantém à parte. Tão pouco existe uma cultura pedagógica que materialize na pessoa do aluno, a pessoa-criança, já que a participação deste no seu processo educativo se têm traduzido mais em objecto da acção, do que sujeito da mesma (Boutinet, 1996).

Respondendo à questão colocada, é de inferir que só através da acção educativa poderemos dotar as crianças com ferramentas que permitem distinguir o essencial do supérfluo e valorizar uma vivência cultural activa, resistente aos impulsos consumistas.
Uma acção pedagógica diferenciada que eduque a criança para a ocupação dos tempos livres, de forma activa e crítica, proporcionará uma vivência mais saudável, dotando-a de outras competências como o saber ser e o saber estar com os outros (Delors, 1999).


Esclarecimentos


O termo Escola aqui utilizado não se refere especificamente ao espaço físico escolar em que o “Bruno” habita, mas sim às responsabilidades institucionais e pedagógicas de quem de direito deveria dotar os estabelecimentos de ensino de recursos materiais e humanos para que a instituição escolar seja de facto inclusa, promotora de desenvolvimento pessoal, catalisadora dos saberes e do Ser.

Homenagem

Quero aqui prestar homenagem a todos os profissionais do estabelecimento de ensino frequentado pelo “Bruno”,com especial destaque à sua professora, pelo seu esforço e empatia, sendo testemunha da sua preocupação em fazer mais com tão pouco.
Aproveito também para prestar homenagem ao Exmo Senhor Vereador do Pelouro Educação da Câmara Municipal, que tomando conhecimento do caso do Bruno, providenciou para que o menino voltasse a ter direito ao recreio e às actvidades, sentindo-se esta criança novamente Pessoa.


Referências bibliográficas

Formosinho, J. A CRIANÇA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA, 2004, Universidade Aberta

Pereira, S. OS DESAFIOS EDUCATIVOS DOS MEDIA NA EDUCAÇÃO DE INFÂNCIA, 2001, Instituto da Criança, Universidade do Minho, última consulta a 14 de Dezembro de 2009, em:
https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/5095/1/DesafiosEducativosMediaJI.pdf

Amante, L. (2007). AS TIC NA ESCOLA E NO JARDIM DE INFÂNCIA NA ESCOLA E NO JARDIM DE INFÂNCIA: MOTIVOS E FACTORES PARA SUA INTEGRAÇÃO; Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 03, pp. 51-64., última consulta a 13 de Dezembro de 2009, em: http://sisifo.fpce.ul.pt/pdfs/sisifo03PT04.pdf

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Atrofio de Natal


Há já algum tempo que não habito por estas paragens, pois, tendo orientado este espaço para a reflexão académica, torna-se dificil dar-lhe outro tom.

O primeiro semestre do 3º ano arrancou com dificuldade acrescida, pesando em absoluto os compromissos familiares e profissionais a que tenho de atender. Não tenho tido tempo para as leituras e muito menos para reflectir sobre as mesmas.

Sinto-me como o coelho da Alice, agarrada ao relógio e sempre a correr, sempre atrasada, sempre com um compromisso imprescindível e inadiável, tal que, os momentos de silêncio são especialmente apreciados.

Assim, quebrando o jejum de alguns meses, aqui estou eu reflectindo sobre o que considero ser um atrofio de Natal.

Sem espaço de manobra, este ano o Natal veio sem árvore e sem ela, senti a ausência da dança das luzes, dos embrulhos coloridos, das canções de fundo. A verdade é que não me apeteceu fazê-la, pois teria sido mais um check na atribulada agenda, um cumprir de calendário.

Temos um calendário engraçado e sobretudo consumidor. Nesta época diz: compra.

Este ano, como em nenhum outro, senti a mão pesada que nos empurra para a caixa de um qualquer estabelecimento. Resisti, o mais que pude!

Contrariada, pensei em comprar um presente para cada um dos miúdos, um para cada bisa e zero para os adultos. E mesmo pondo em prática este plano, ainda assim, não deixei de sentir o gosto amargo daquele algo que nos compele a comprar para o Natal.

É um algo ardiloso que, sob o premiado spot publicitário do «Este Natal dê!», conduz-nos, uma vez mais, para o turbilhão do shopping. Parece pouca a diferença, sem importância até, mas de facto assim não o é!

Se descaradamente nos dissessem «Este Natal Compre!» teríamos um alerta aranha a zumbir nas nossas cabeças. O Natal não tem nada a haver com o comprar, é antes a dádiva de um nascimento, a celebração da familia. E lá porque os Reis Magos viajaram pelo deserto para oferecer, não quer dizer que o tenham feito com oferendas made in qualquer outra parte do mundo, sob o jugo de turnos pesados e mal pagos.

Os Reis Magos presentearam o Menino Jesus porque devem ter respondido à singela questão, cuja resposta é encontrada no seio do silêncio que nos permite ouvir o som da nossa própria voz : o que tenho eu para oferecer?

Assim, foram oferecidos três presentes tão simbólicos como o próprio Nascimento que viria a transformar o Homem.

Após sucessivas vagas de evolução histórica, que nos trouxeram a este exacto momento, o Homem tornou-se num tradutor do complexo mundo natural e social, procurando compreender e simplificar todas as suas vertentes. Num rasgo de suprema inteligência a sociedade ocidental do final do século XX despediu a figura mítica do Menino Jesus e substituí-O por uma mais terrena, patrocinada pelo refresco mais bebido no mundo inteiro: o Pai Natal, vestido e calçado pela Coca-Cola, famosa pelos seus designs formatadores! Desde então, pensamos ter a cura para o conflito religioso que opõe crenças e povos, bastando, para o efeito, unirmo-nos num grande esforço global de estoirarmos o saldo bancário (risco muito mais eminente do que a extinção global que não passa de uma ameaça), comprando para oferecer, tal como fizeram os Reis Magos, que como se sabe não vieram de Ocidente. Assim, ao regressarem à escola, os nossos filhos podem, civilizadamente, falar de valores e rivalizarem no grau de demência que afectou os pais e familiares, ainda que, algures e em alguns deles, surja aquele sentimento de injustiça por, apesar do bom comportamento e das excelentes notas escolares, os pais só investiram 70€ em peças para actualizar o pc, enquanto que outro, faltoso e com 7 negativas, recebeu um computador novo, no valor de 899€.

Na minha simbólia tentativa de furar o Natal, ainda assim não consegui evitar que o Pai Natal trouxesse, além de muitos outros, três carros telecomandados para uma só criança e nem consegui evitar o vazio que se sente logo após o último papel rasgado.

Assim, na minha última tentativa de boicotar o Natal e até porque já são horas de almoçar em familia, não vos ofereço quaisquer presentes, apenas vos desejo muita paz, que por não ter valor comercial não vos interessa nada.

Feliz Natal.


quarta-feira, 8 de julho de 2009

Da oralidade à cultura escrita

Uma lenta transição no contexto português
Não obstante a falta de fiabilidade dos dados estatísticos dos Censos realizados entre o século XIX e o século XX, os diversos estudos apontam, consensualmente, para a lenta transição da sociedade portuguesa para um modo de vida assente na cultura escrita.
Os factores não são muito claros, mas algumas hipóteses explicativas são formuladas, nomeadamente:

_O atraso das sociedades cristãs relativamente às culturas protestantes que se demarcaram no campo da alfabetização; o que fará algum sentido se pensarem que os dogmas cristãos sempre serviram para controlar as populações e mantê-las sob um estádio de subdesenvolvimento e de servilismo.

_Aassociação de uma escolarização tardia das sociedades devido ao pobre investimento nos processos de alfabetização (o que poderá explicar a resistência à cultura escrita).

_A possibilidade de que a localização geográfica terá deixado Portugal na periferia dos grandes acontecimentos no Centro-Norte Europeu, contribuindo para um fraco desenvolvimento de uma sociedade enquanto potência económica e cultural.

Não obstante os coloridos impulsos de alfabetização na 1ª República e os avanços e recuos registados entre o golpe militar de Maio de 1926 e a Revolução dos Cravos, a alfabetização e a escolarização em Portugal têm contornos assimétricos marcados ou pelo fraco investimento político ou pela resistência da população. Uma teia de factores estará na base de um Portugal provinciano que desvalorizava os saberes escolares, descontextualizados do seu quotidiano, resistindo à penetração da cultura escrita no seu dia-a-dia.

Obra em estudo: Literacia e Sociedade, Contribuições pluridisciplinares. Organização: Maria Raquel Delgado-Martins, Glória Ramalho, Armando Costa. Editorial Caminho, SA, Lisboa, 2000

A cultura escrita e o desenvolvimento do Ocidente

A escola na base de transformação da sociedade
A passagem de um modo de vida assente na cultura oral para um modo de vida com base na cultura escrita não se deu de forma linear, provocada por acontecimentos isolados; mas pelo contrário, como todo o processo de mudança nasceu dos conflitos, da ruptura com os paradigmas sociais vigentes. De acordo com António Candeias, «as relações entre as sociedades ocidentais e os modos de cultura escrita que nelas foram criando raízes até se tornarem dominantes no século XX» evidenciam um processo de transformação num crescente histórico marcado pela Revolução Industrial e as mutações provocadas pelos ciclos económicos que acompanharam todo o processo; «o entrelaçar entre a Reforma Protestante e a Cultura das Luzes» do qual emergiu a «cultura do cidadão»; a consolidação do Estado-Nação e o «aperfeiçoamento de aparelhos estatais» que legitimaram a ascensão dos ideais burgueses.
A consolidação do Estado-Nação conduziu a uma crescente sofisticação das sociedades, cuja complexidade deriva e alimenta uma realidade quotidiana embebida na cultura escrita, levando o indivíduo a recorrer ao domínio desse mundo simbólico para potenciar uma mobilidade social que outrora não seria possível.
Na construção das sociedades modernas ocidentais a ideia de progresso, inspirada pelo salto tecnológico dado aquando a Revolução Industrial, pressupunha uma socialização uniforme e prolongada que modelasse os povos de acordo com um ideal de cidadão que sobrelevaria eficaz e competitivamente o Estado-nação em todos os seus domínios: económico, politico, social, cultural.
Esta socialização teria como veículo a escola de massas e um sistema educativo construído para o efeito, dotando os indivíduos, simultaneamente, de conhecimentos rígidos, simbólicos e de valores conformados com os mecanismos de gestão política e social que a nova organização administrativa assim o impunha.
Assim, progressivamente a escola foi incorporando o movimento voluntário de alfabetização num sistema formal cujas directrizes ditariam o que seria ensinado e a forma como esses saberes seriam transpostos para o quotidiano social e profissional dos indivíduos, tornando-se a base de transformação do aparelho produtivo e do tecido social.

Obra em estudo: Literacia e Sociedade, Contribuições pluridisciplinares. Organização: Maria Raquel Delgado-Martins, Glória Ramalho, Armando Costa. Editorial Caminho, SA, Lisboa, 2000

Cem anos de problemas não resolvidos

Contexto histórico do conceito «Literacia»

Reportando-se aos processos de alfabetização, escolarização e níveis de literacia demonstrados, é assim que se refere o autor António Candeias - do capítulo V da obra Literacia e Sociedade, dirigida por Maria Raquel Delgado-Martins - à evolução conceptual e funcional dos termos e dos seus processos.

Na viragem do século XIX para o XX, o alfabeto poderia ser quem afirmasse ou provasse saber ler ou escrever, saber ler e escrever, saber ler, escrever e contar, ou ter frequentado uma escola ou dela obtido um diploma. Estes factos e para melhor compreensão dos seus efeitos estatísticos são ilustrados com exemplos distintos, do qual destaco, pela ambiguidade dos resultados, os Censos Populacionais Finlandeses em 1880. Nestes censos, o saber ler era a qualidade que definia o alfabeto e que medida estatisticamente apresentou uma população 98% alfabetizada. Já no século XX e com base nestes mesmos estudos, a UNESCO reviu estes resultados, tendo como indicador de medida o indivíduo que sabe ler e escrever (alfabeto), baixando a percentagem de alfabetizados para 13%.
A imprecisão dos termos, como é referido no estudo em análise, está intrinsecamente ligado ao que se quer medir e representar estaticamente. Assim, na amplitude entre noção e intenção há um intervalo confortável que serve propósitos estatísticos e interesses ocultos de uma falsa vaidade, cuja motivação para a manipulação dos termos e dos resultados tem tanto de secular como de contemporaneidade.

O que os resultados estatísticos, até à segunda metade do século XX, nunca demonstraram foi a capacidade dos indivíduos de funcionar em contacto com a cultura escrita, denotando-se, à medida que a sociedade submergiu nessa cultura e se complexificou, uma reacção limitada e disfuncional por parte de importantes fracções de população escolarizada. Desta constatação e preocupação emergiu o termo de alfabetização funcional «para referir competências do uso da escrita em ambientes formais e informais, sendo a partir desta noção que, em Portugal, se constrói o conceito de literacia».
Literacia, cujo conceito se mostra igualmente de complexa delimitação, tem como definições base a “capacidade de, através da escrita e ao que a ela está associado, se conseguir funcionar em sociedade e atingir objectivos funcionais” e/ou “capacidade de processamento da informação escrita no contexto do dia-a-dia”. Este conceito surge com a constatação das evidentes dificuldades dos indivíduos escolarizados em contacto com a cultura escrita, denunciando o que as sucessivas reformas educativas não conseguiram resolver: entrelaçar a vivência escolar com as exigências quotidianas.
Esta é uma sentença algo irónica se atendermos ao facto de que a escolarização em massa teria como objectivo primário dotar, uniformemente, todos os indivíduos de determinadas competências - independentemente do seu contexto social, cultural, linguístico, étnico - em prol de um bem comum, ainda que hierarquizado, que se traduziria na construção da sociedade moderna.

Actualmente, literacia respeita múltiplas competências associadas à ideia de um sujeito detentor de qualidades e conhecimentos mais abrangentes do mundo natural, da complexidade social e dos seus artefactos, com uma visão conciliadora do global e do particular; não deixando de ser um conceito, em mutação, que transfere para os indivíduos e para as instituições a responsabilidade da concretização de um ideal social projectado e imposto por uma minoria cujo poder cria o design das sociedades humanas através dos tempos.

Obra em estudo: Literacia e Sociedade, Contribuições pluridisciplinares. Organização: Maria Raquel Delgado-Martins, Glória Ramalho, Armando Costa. Editorial Caminho, SA, Lisboa, 2000

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Subnutrição informativa

Após o frenesim do passado dia 7 de Junho, eis que no dia seguinte chega fresca a boa nova de que certa pastelaria divulga a hora de confecção dos produtos em exposição, garantindo assim aos seus clientes, a qualidade e frescura dos seus bolinhos e pãezinhos.
Não obstante considerar louvável a iniciativa empresarial, pergunto-me se o responsável por tal notícia é amigo, cliente assíduo da tal pastelaria ou se à segunda-feira de manhã a falta do que divulgar leva a que se anuncie num bloco noticioso, de difusão nacional, a frescura dos brioches!

Hoje, fui presenteada com uma entrevista ao histórico líder americano e não obtendo quaisquer dados sobre a dita entrevista, percebo que o cerne da noticia incidia sobre um pequeno insecto que viria a ser assassinado pelo célebre, com as próprias mãos e perante as câmaras. Ao observar a mosca inerte na carpete, ainda me questionei se a mesma estaria a fingir, assim ao estilo de Hollywood, essa sim uma notícia digna da crónica do estranho e do bizarro.

Certo que não queremos apenas ver e ouvir desgraças no noticiário, seja qual for o seu horário, contudo preocupa-me que as questões de fundo sejam contornadas e contornáveis.

Já ninguém morre de fome neste Mundo?
Já não compramos brinquedos fabricados por crianças para crianças?
Já ninguém é testado como cobaia de uma qualquer indústria que leva a cura ou o alívio a qualquer outra parte do Mundo?
Os direitos humanos são respeitados aqui e em qualquer lugar?
Não existem outros colarinhos madre pérola?

Enfim, como dizia Oscar Wilde "O jornalismo moderno tem uma coisa a seu favor. Ao nos oferecer a opinião dos deseducados, ele mantém-nos em dia com a ignorância da comunidade."

E a ignorância, estimados leitores, mantém cega a justiça!

sábado, 13 de junho de 2009

Oportunidades positivas

Uma reflexão no âmbito da formação de adultos
A Iniciativa Novas Oportunidades combina os esforços de dois Ministérios - do Trabalho e da Solidariedade Social e da Educação - e protagoniza a actual política do Governo no âmbito da educação, formação profissional e do emprego, destinando-se a adultos sem a qualificação adequada para efeitos de inserção ou progressão no mercado de trabalho e, prioritariamente, sem a conclusão do ensino básico ou secundário; tendo como pilares do processo a formação profissionalizante e o reconhecimento, validação e certificação das competências adquiridas ao longo da vida.
Não pensando nos próximos Censos e esquecendo alguma polémica gerada em torno do “boato” de que esta iniciativa se reveste de algum facilitismo na obtenção da pretendida certificação escolar, tenho a dizer que toda e qualquer iniciativa que resgate os indivíduos para experiências de aperfeiçoamento pessoal e profissional são por si só muito válidas. Por outro lado, e não equiparando a entrega de equipamento informático e de internet a baixo custo à distribuição de frigoríficos e micro-ondas em Gondomar, é necessário lembrar que o cidadão comum, carenciado, deve ser apoiado no acesso às novas tecnologias e à internet. Ainda no âmbito desta iniciativa, é de salientar que para receber o equipamento, o formando teve de realizar um percurso formativo em TIC, dotando-o de competências que no contexto pessoal ou profissional serão igualmente úteis.
Problema está no entusiasmo de alguns responsáveis pelo processo formativo, a nível local e particular, que, por vezes, confundem as estratégias de motivação fomentadas pelo Governo, como um incentivo para que, no terreno, sejam igualmente benevolentes na hora de emissão de certificados.
Uma via profissionalizante ou um exercício de reflexão sobre o percurso pessoal são caminhos válidos e alternativos, contudo para que se evite «a perda do valor social dos certificados» ou a mera «melhoria nas estatísticas das qualificações da população adulta portuguesa» é importante que esta iniciativa se revista de qualidade, rigor e transparência, tanto mais quando existe a suspeita de uma instrumentalização eleitoralista.